Lei n.º 43/2024, de 2 de dezembro: medidas especiais de contratação pública

Lei n.º 43/2024, de 2 de dezembro: medidas especiais de contratação pública

No passado dia 2 de dezembro, foi publicada a Lei n.º 43/2024 que procedeu à alteração da Lei n.º 30/2021, de 21 de maio, que aprova medidas especiais de contratação pública e que entrou em vigor no décimo dia útil após o da sua publicação – ou seja, a 16 de dezembro de 2024.

O referido diploma legal concretiza quatro pontos essenciais:

  1. Aprovação de um regime de fiscalização prévia especial pelo Tribunal de Contas dos atos e contratos que se destinem à execução de projetos financiados ou cofinanciados por fundos europeus;
  2. Aprovação de um regime excecional aplicável às ações administrativas urgentes de contencioso pré-contratual que tenham por objeto a impugnação de atos de adjudicação relativos a procedimentos de formação de contratos que se destinem à execução de projetos financiados ou cofinanciados por fundos europeus;
  3. Aprovação de um regime de recurso à arbitragem nos contratos de empreitada de obra pública ou de fornecimento de bens ou serviços públicos que sejam financiados ou cofinanciados por fundos europeus;
  4. Aprovação de um regime especial de formação de contratos no âmbito da concentração de serviços no edifício Campus XXI.

 

  1. Regime de fiscalização prévia especial pelo Tribunal de Contas dos atos e contratos que se destinem à execução de projetos financiados ou cofinanciados por fundos europeus

Através do aditamento do artigo 17.º-A à Lei n.º 30/2021, a Lei n.º 43/2024 cria um regime de fiscalização prévia especial, consagrando que os atos e contratos que se destinem à execução de projetos financiados ou cofinanciados por fundos europeus estão sujeitos a fiscalização do Tribunal de Contas que se rege pela Lei n.º 98/97, de 26 de agosto, e pelo Decreto-Lei n.º 66/96, de 31 de maio, em especial pelas normas aplicáveis à fiscalização prévia, com as especificidade previstas neste novo regime.

Antes de mais, recorde-se que a Lei n.º 98/96, de 26 de agosto (Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas, doravante LOPTC), estabelece nos artigos 44.º a 48.º um regime de fiscalização prévia, consagrando no artigo 45.º que os atos, contratos e demais instrumentos sujeitos à fiscalização prévia do Tribunal de Contas de montante igual ou superior a €750 000 podem produzir todos os seus efeitos antes do visto da declaração de conformidade, exceto quanto aos pagamentos a que derem causa; enquanto que os atos, contratos e demais instrumentos sujeitos à fiscalização prévia, cujo valor seja superior a €950 000 não produzem quaisquer efeitos materiais e financeiros antes do visto ou declaração de conformidade.

Ora, de acordo com o novo artigo 17.º-A os atos e contratos financiados por fundos europeus sujeitos a fiscalização prévia são eficazes e produzem todos os seus efeitos antes da decisão do Tribunal de Contas, com as especificidades previstas neste artigo, não lhes sendo aplicável o disposto no artigo 45.º da LOPTC.

Assim, após submissão a visto prévio do Tribunal de Contas, no decurso da análise poderão verificar-se uma das seguintes situações:

  1. A análise revela que os atos e contratos estão conformes, pelo que o Tribunal de Contas emite uma decisão de procedência, que poderá ser acompanha de recomendações, as quais não obstam à execução do contrato em causa.
  2. Caso se verifiquem indícios de desconformidade, o Tribunal de Contas remete o processo para fiscalização concomitante e eventual apuramento de responsabilidades financeiras, sem que isso obste à execução do ato ou contrato em causa.
  3. Verificação de preterição total de procedimento de formação do contrato ou a assunção de encargos sem cabimento em verba orçamental própria, que determina emissão, pelo Tribunal de Contas, da decisão de improcedência, com consequente cessação imediata dos efeitos dos atos ou contratos objeto da decisão.

Destaca-se que, neste regime de fiscalização prévia especial, os atos e contratos são eficazes e podem produzir todos os seus efeitos antes da decisão do Tribunal de Contas e ainda que existam indícios de desconformidade, os seus efeitos só cessam caso o Tribunal conclua pela preterição total de procedimento de formação do contrato ou a assunção de encargos sem cabimento em verba orçamental própria.

A respeito dos efeitos que ocorrem antes do visto, no regime geral de fiscalização prévia encontra-se prevista uma norma no n.º 3 do artigo 45.º que consagra que “Os trabalhos realizados ou os bens ou serviços adquiridos após a celebração do contrato e até à data da notificação da recusa do visto poderão ser pagos após esta notificação, desde que o respectivo valor não ultrapasse a programação contratualmente estabelecida para o mesmo período.”

A Lei n.º 43/2024 não contém norma idêntica – e prevê expressamente que o artigo 45.º não é aplicável ao atos e contratos sujeitos ao regime de fiscalização prévia especial previsto no artigo 17.º-A – pelo que se impõe determinar qual a solução legal para os pagamentos executados antes da decisão de improcedência.

Ora, da disposição conjugada do n.º 2 do artigo 284.º do Código de Contratos Públicos (doravante, CCP) e da alínea l) do n.º 2 do artigo 161.º, n.º 2 do Código de Procedimento Administrativo (adiante, CPA) decorre que os atos ou contratos praticados com preterição total do procedimento legalmente exigido são nulos. Neste sentido, caso o Tribunal de Contas emita, no âmbito da fiscalização prévia especial, uma decisão de improcedência, deve aplicar-se o regime da nulidade previsto no artigo 162.º do CPA e no artigo 289.º do Código Civil (aplicável por remissão do artigo 285.º, n.º 2 do CCP): os atos ou contratos nulos não produzem quaisquer efeitos, produzindo a declaração de nulidade efeito retroativos, com restituição de tudo quanto haja sido prestado ou, se a restituição não for possível, o valor correspondente.

Atendendo que se dispõe que este regime de fiscalização prévia se rege pela Lei n.º 98/97, de 26 de agosto, e pelo Decreto-Lei n.º 66/96, de 31 de maio, em especial pelas normas aplicáveis à fiscalização prévia, então, será igualmente aplicável o artigo 85.º da LOPTC referente ao visto tácito, devendo o Tribunal de Contas emitir uma decisão no prazo máximo de 30 dias, sob pena de o processo se considerar visado/conforme.

O disposto no artigo 17.º-A da Lei n.º 43/2024 aplica-se os atos e contratos que se destinem à execução de projetos financiados ou cofinanciados por fundos europeus, incluindo os que se encontrem pendentes de decisão do Tribunal de Contas na data de entrada em vigor do diploma legal.

No âmbito deste regime de fiscalização prévia especial foi publicada a Resolução do Tribunal de Contas n.º 4/2024-PG que aprova as Instruções 1/2024 sobre a organização e tramitação dos processos de fiscalização prévia especial do Tribunal de Contas, estabelecendo ainda as regras de acesso e utilização da plataforma eContas, para efeito de remessa dos processos de fiscalização prévia especial.

  1. Regime excecional da ação administrativa urgente de contencioso pré-contratual

A Lei n.º 43/2024 procede ao aditamento do artigo 25.º-A que estabelece que as ações administrativas urgentes de contencioso pré-contratual que tenham por objeto a impugnação de atos de adjudicação relativos a procedimentos que se destinem à execução de projetos financiados ou cofinanciados por fundos europeus, desde que propostas no prazo de 10 dias úteis contados desde a notificação da adjudicação a todos os concorrentes, fazem suspender automaticamente os efeitos do ato impugnado.

Recorde-se que o artigo 103.º-A do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (doravante, CPTA) já previa, para os procedimentos com publicidade internacional, o efeito suspensivo automático das ações de contencioso pré-contratual desde que propostas no prazo de dez dias úteis contados desde a notificação da adjudicação a todos os concorrentes. Na verdade, ainda que intitulado de “automático” o efeito suspensivo não ocorre com a mera propositura da ação de contencioso pré-contratual, dependendo, conforme decorre do artigo 102.º do CPTA, de despacho liminar do juiz, a proferir no prazo máximo de 48 horas, se verificados os pressupostos do artigo 103.º-A.

Ora, por via do aditamento deste artigo 25.º-A é alargado o leque dos procedimentos a quais é aplicável o efeito suspensivo das ações de contencioso pré-contratual – propostas no referido prazo de dez dias úteis – passando a ser aplicável também aos procedimentos, independentemente da sua modalidade ou publicidade, que se destinem à execução de projetos financiados ou cofinanciados por fundos europeus.

Este regime excecional tem a particularidade de prever que a entidade demandada pode requerer o levantamento do efeito suspensivo sem prévia audição da parte contrária e com mera junção de prova documental sumária do risco de perda de financiamento em contrato que se destine à execução de projeto financiado ou cofinanciado por fundos europeus.

Ao contrário do previsto no regime geral do artigo 103.º-A, em que a parte contrária é ouvida antes da decisão do juiz quanto ao pedido de levantamento do efeito suspensivo, no regime excecional do artigo 25.º-A, o Tribunal decidirá, sumariamente e no prazo máximo de 48 horas, sobre o cumprimento dos pressupostos para o levantamento do efeito suspensivo.

Para este efeito, indica o n.º 4 do artigo 25.º-A que se presume que existe risco de perda de financiamento quando haja uma conexão do objeto do contrato com a execução de projetos financiados ou cofinanciados por fundos europeus, bastando, para o efeito, a junção pelo requerente de documento que comprove a decisão de financiar o projeto no qual o contrato se integre.

Caso o Tribunal decida, provisoriamente, o levantamento do efeito suspensivo, é então promovida a audição da parte contrária para, no prazo de cinco dias, requerer, fundamentadamente, a manutenção do efeito suspensivo. Após esta pronúncia, é notificada a entidade demandada para, no prazo de sete dias, ampliar os fundamentos do seu pedido, de modo a demonstrar a ponderação dos interesses públicos e privados em presença e os prejuízos que resultariam da manutenção do efeito suspensivo – numa solução legal idêntica à prevista no n.º 4 do artigo 103.º-A do CPTA – ao qual a parte contrária pode responder no prazo de sete dias. Findos estes articulados e no prazo máximo de sete dias após a realização de diligências instrutórias absolutamente indispensáveis, é proferida a decisão definitiva do incidente de levantamento do efeito suspensivo.

O efeito suspensivo é levantado quando, devidamente ponderados todos os interesses públicos e privados em presença, os prejuízos que resultariam da sua manutenção se mostrem superiores aos que podem resultar do seu levantamento.

Este regime é aplicável aos contratos formados ao abrigo do regime procedimental previsto na Lei n.º 43/2024, no regime procedimental que resulta do CCP, bem como a contratos formados nos termos da demais legislação sobre contratação pública. Quanto à sua vigência, o artigo 25.º-A vigorará até ao final dos respetivos programas de financiamento por fundos europeus, sendo aplicável às ações administrativas urgentes de contencioso pré-contratual que estejam pendentes, assim como àquelas que sejam intentadas após a data de entrada em vigor do referido diploma.

  1. Regime de recurso à arbitragem nos contratos de empreitada de obra pública ou de fornecimento de bens ou serviços públicos que sejam financiados ou cofinanciados por fundos europeus

O artigo 25.º-B aditado à Lei n.º 30/2021 estabelece que os contratos de empreitada de obra pública ou de fornecimento de bens ou de prestação de serviços que sejam financiados ou cofinanciados por fundos europeus em que, durante a respetiva execução, se suscitem litígios que pela sua relevância possam colocar em risco o cumprimento dos prazos contratuais ou a perda de fundos, podem ser sujeitos a arbitragem, independentemente de se encontrar previsto em tais contratos que o litígio deva ser dirimido pelos tribunais administrativos.

Consagra-se, assim, a possibilidade de qualquer das partes propor a celebração de compromisso arbitral e consequente modificação da cláusula contratual que defina o foro competente, aplicando-se o disposto no artigo 476.º do CCP com as necessárias aplicações e devendo privilegiar-se o recurso a um centro de arbitragem institucionalizada.

Caso já se encontre pendente uma ação num tribunal administrativo, as pretensões a submeter aos tribunais arbitrais devem coincidir com o pedido e a causa de pedir do processo judicial a extinguir, apenas se admitindo a redução do pedido; o pedido de constituição do tribunal arbitral é obrigatoriamente acompanhado de certidão judicial eletrónica do requerimento apresentado para a extinção da instância judicial.

A lei prevê ainda a possibilidade de as partes, previamente à arbitragem, requererem a tentativa de conciliação extrajudicial, perante uma comissão composta por um representante de cada uma das partes e presidida pelo presidente do IMPIC, I. P., ou por um membro qualificado do mesmo Instituto que aquele, para o efeito, designar.

O disposto no artigo 25.º-B aplica-se aos contratos em execução, assim como àqueles que venham a ser celebrados após a data de entrada em vigor da presente lei.

  1. Regime especial de formação de contratos no âmbito da concentração de serviços no edifício Campus XXI

Através do aditamento do artigo 25.º-C é criado regime especial de celebração de contratos que tenham por objeto a locação ou aquisição de bens móveis, a aquisição de serviços ou a realização de empreitadas de obras públicas que se destinem à organização, programação, conceção e execução da concentração de serviços públicos nos edifícios do Campus XXI ao abrigo do Decreto-Lei n.º 43-B/2024, de 2 de julho, que aprova a orgânica da Secretária-geral do Governo.

Consagra-se assim, a possibilidade de adoção de procedimentos de consulta prévia simplificada, com convite a pelo menos cinco entidades, quando o valor do contrato for, simultaneamente, inferior aos limiares referidos nos números 2, 3 ou 4 do artigo 474.º do CCP, consoante o caso.

Estes procedimentos ficam dispensados das limitações constantes do n.º 1 do artigo 32.º do CCP (referente aos contratos mistos) -, e das exigências de fundamentação previstas no n.º 3 do artigo 36.º do CCP (relativa à avaliação de custo-benefício) – e no n.º 2 do artigo 46.º-A do CCP (quanto à fundação da não adjudicação por lotes).

Adicionalmente, estes procedimentos estão ainda dispensados de fiscalização prévia do Tribunal de Contas, devendo ser remetidos eletronicamente para este tribunal para efeitos de fiscalização concomitante no prazo de 10 dias após a sua celebração, acompanhados do respetivo processo administrativo, remessa que constitui condição de eficácia do respetivo contrato.

Artigo de autoria da advogada Maísa Coutinho

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