Novo entendimento do que são “despesas com pessoal” e consequências

Orientações genéricas vinculativas da AT

Novo entendimento do que são “despesas com pessoal” e consequências

No termos das leis tributárias cabe à Autoridade Tributária (“AT”), na pessoa do seu dirigente máximo, a emissão de orientações genéricas visando a uniformização da interpretação e aplicação das normas tributárias, através de circulares ou outros instrumentos normativos semelhantes, vinculativos para os serviços.

Neste contexto, a AT veio através da publicação de uma ficha doutrinária em julho passado – Informação Vinculativa (2020 000289) processo sancionado por Despacho do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais (“SEAF”) (227/2020) – inverter aquela que foi durante vários anos, a sua posição quanto ao conceito de “despesas com pessoal”, relevante para efeitos do cálculo do montante de custos ou perdas aceites num determinado exercício fiscal,  respeitantes a encargos de utilidade social (seguros de acidentes pessoais, de vida, de doença ou saúde, contribuições para fundos de pensões e equiparáveis ou para quaisquer regimes complementares de segurança social a favor dos seus trabalhadores) suportados pelas empresas em beneficio do seus trabalhadores.

A norma que prevê a dedução destas despesas como custo do exercício é o art.º 43º, n. 2, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“CIRC”), e fá-lo nos seguintes termos:

Artigo 43.º
Realizações de utilidade social

1 – (…)

2- São igualmente considerados gastos do período de tributação, até ao limite de 15 % das despesas com o pessoal contabilizadas a título de remunerações, ordenados ou salários respeitantes ao período de tributação, os suportados com:

  1. a) Contratos de seguros de acidentes pessoais, bem como com contratos de seguros de vida, de doença ou saúde, contribuições para fundos de pensões e equiparáveis ou para quaisquer regimes complementares de segurança social, que garantam, exclusivamente, o benefício de reforma, pré-reforma, complemento de reforma, benefícios de saúde pós-emprego, invalidez ou sobrevivência a favor dos trabalhadores da empresa;
  2. b) Contratos de seguros de doença ou saúde em benefício dos trabalhadores, reformados ou respetivos familiares.

 

Ao contrário do defendido em termos unanimes pela jurisprudência, a AT tem entendido que as “despesas com pessoal contabilizadas a título de remunerações, ordenados ou salários” referidas na norma e que constituem a base de calculo do limite da dedutibilidade destes encargos, seriam apenas as sujeitas a contribuições obrigatórias para a segurança social ou para qualquer outro regime contributivo. A interpretação da AT vigente até agora tinha assim como consequência aumentar o valor do IRC devido, já que diminuía a base de calculo da percentagem aceite como custo fiscal. Inversamente, a posição da jurisprudência possibilitava uma maior dedução de custos a título de realizações de utilidade social e, por isso, resultava em menos imposto a pagar pelos contribuintes.

O entendimento agora revogado, remonta a 21 de junho de 1996, foi também sancionado pelo SEAF à época.

Vários foram os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo que entretanto, inequivocamente, se pronunciaram no sentido de estabelecer que a interpretação da AT era meramente conclusiva, não enunciava argumentos que a suportassem e que da leitura da norma resultaria claro que o legislador teve em mente todas as retribuições como tal registadas na contabilidade do contribuinte, independentemente de estarem ou não sujeitas a descontos obrigatórios para a Segurança Social. Tal interpretação restritiva, suscetível como era de influir na determinação da matéria tributável e determinar a não aceitação de um custo fiscal, só seria admissível se resultasse minimamente autorizada por uma expressão contida na letra da lei, não gozando a AT de discricionariedade que lhe permitisse introduzir esse critério de aplicação da norma.

A mesma norma, sendo como é, de incidência de tributos (as que estabelecem os pressupostos cuja conjugação faz nascer a obrigação de imposto, como as que determinam o sujeito, a matéria coletável e a taxa de imposto) respeita a um domínio onde vigora o princípio da tipicidade – o qual, constituindo uma decorrência do princípio da legalidade (art.º. 103/2 da Constituição da República Portuguesa – “CRP”) obriga a que todos os elementos necessários à caraterização e aplicação dos impostos devam estar criados pela lei e previstos por ela.

Ora, estas conclusões que se retiram da jurisprudência perfeitamente uniforme dos tribunais superiores, nas inúmeras situações em que a AT liquidou adicionalmente IRC aos contribuintes por força da restrição arbitraria do conceito de despesas com pessoal, datavam já de 2015/2016 (AC. STA 12.10.2016 recurso 0797/15).

A questão que pode colocar-se é, pois, a de saber porque é que foram necessários tantos anos de decisões judiciais desfavoráveis, com os custos inerentes de litigância, quer para o Estado quer para os contribuintes, para que a AT viesse finalmente reconhecer a evidência.

Nesta, como em outras situações, a AT tem mostrado alguma incapacidade de manter departamentos internos que em tempo útil, analisem a pertinência das suas posições e as compatibilizem com aquelas que se vão consolidando na jurisprudência dos tribunais superiores.

A insuficiente coordenação neste domínio tem ainda uma outra vertente traduzida no facto da AT estar obrigada a rever oficiosamente os atos de liquidação que tenha praticado com base em erro que lhe seja imputável.

Efetivamente, a Lei Geral Tributária, (“LGT”) (art.º 78º) vem estabelecer que a revisão dos atos tributários pela entidade que os praticou pode ser efetuada por iniciativa da AT, no prazo de 4 anos após a liquidação, ou a todo o tempo, se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços.

Este instituto da revisão oficiosa constituiu uma concretização do dever da AT de revogar atos ilegais nas hipóteses em que ocorram erros nas liquidações que se traduzam na arrecadação de imposto em valor superior ao legalmente previsto. Os princípios da justiça igualdade e legalidade impõem essa correção.

A revisão oficiosa dos atos tributários “por iniciativa da administração tributária” caso não seja promovida por esta entidade, pode realizar-se a “pedido do contribuinte” e assim, de alguma forma “forçada” pelo contribuinte, sendo o indeferimento expresso ou tácito desse pedido de revisão suscetível de impugnação contenciosa (art.º 95/1 e 2 al. d) da LGT e 97/1al. d) CPPT).

Estamos aqui na prática perante um meio complementar aos meios próprios de impugnação administrativa e contenciosa do ato tributário que os contribuintes têm à sua disposição, com um prazo substancialmente superior, de 4 anos, e a sua utilização não é prejudicada pelo facto do pedido ser apresentado muito depois de esgotados os prazos normais daqueles meios de impugnação administrativa e contenciosa. O seu fundamento terá de ser, neste caso, obrigatoriamente o “erro imputável aos serviços”, entendendo-se como tal, lapso, o erro material ou de facto, mas também o erro de direito, como o que resulta de uma interpretação ilegal das normas jurídicas, de que é exemplo o entendimento agora revogado pela AT.

Existindo um erro de direito numa liquidação efetuada pelos serviços da AT e não decorrendo essa errada aplicação da lei de qualquer informação ou declaração do contribuinte, o erro em questão é imputável aos serviços em virtude do disposto na Constituição da Républica Portuguesa (art.º 266/2) e também na LGT (art.º 55) que estabelecem a obrigação genérica da AT atuar em plena conformidade com a lei.

Assim, e neste caso no sentido de devolver o imposto liquidado em excesso aos contribuintes impende sobre a AT a obrigação de providenciar por sua iniciativa, a correção de todas as liquidações que tenha efetuado em contradição com a atual interpretação do conceito de “despesas com pessoal” – “todas as despesas que devam ser escrituradas como “remunerações ordenados ou salários” “não se vislumbrando na lei outro critério que permita considerar apenas as despesas que sejam objeto de desconto para a segurança social”, conforme pode ler-se na ficha doutrinária agora divulgada.

Mas caso não o faça, também os contribuintes que tenham sido prejudicados por liquidações adicionais de imposto nos últimos 4 anos, com base naquela anterior e ilegal interpretação e que não tenham impugnado tais correções nos prazos e através dos meios próprios, podem desencadear a referida iniciativa de revisão oficiosa, impugnar judicialmente a omissão da mesma e o ato de liquidação de imposto em si, e assim recuperarem as quantias pagas em excesso.

Em suma, ao mesmo tempo que saudamos a revogação de uma posição que sempre considerámos ilegal, parece-nos urgente que definitivamente, a AT afete meios e dê prioridade às questões de análise, coordenação, interpretação da lei tributária, e da sua aplicação compatível com as orientações jurisprudências, cada vez mais assertivas, céleres e especializadas, sejam as tomadas nos tribunais judiciais, sejam as do domínio da arbitragem tributária, para que se caminhe no sentido da diminuição da litigância e prevaleçam  os valores da certeza, da segurança e da confiança dos contribuintes no sistema fiscal.

 Vera Calheiros, Of Counsel na BAS Advogados

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