A Investigação Clínica e o RGPD: são os equilíbrios possíveis?

Marco Aurélio Constantino procurou neste texto de opinião evidenciar as aberturas do Regulamento Geral da Proteção de Dados no contexto da investigação clínica.

É consensualmente reconhecida a importância da investigação clínica para o progresso das ciências da saúde e, consequentemente, para a melhoria do estado de saúde das pessoas e o seu bem-estar.

São, igualmente, conhecidas as preocupações e a regulação que se impõe ao desenvolvimento da investigação clínica sempre que envolve intervenções sobre os seres humanos. Aplica-se a este respeito o amplamente divulgado princípio de que a investigação clínica não é um fim em sim mesmo e que o progresso da ciência na área da saúde não constitui autojustificação, mas que se encontram os mesmos numa relação instrumental perante o bem-estar das pessoas e apenas nesse contexto se tornam legítimos.

Em primeiro plano, conforme firmado na Lei da Investigação Clínica (LIC), encontra-se o primado da pessoa. Esse postulado impõe-se a quaisquer práticas de investigação clínica, cuja realização deve ter lugar «no estrito respeito pelo princípio da dignidade da pessoa humana e dos seus direitos fundamentais», prevalecendo sempre os direitos dos participantes sobre os interesses da ciência e da sociedade e, nessa conformidade, sendo devido a tomada de «todas as precauções no sentido do respeito da privacidade do indivíduo e da minimização de eventuais danos para os seus direitos de personalidade e para a sua integridade física e mental»[1].

As preocupações com o respeito da dignidade das pessoas abrangidas por atividades de investigação clínica colocam-se, naturalmente, quanto à utilização que é feita das suas informações e dos seus dados pessoais. A essencialidade dos dados relativos às pessoas para a realização de estudos científicos e para a investigação em geral tem, necessariamente, face ao primado da pessoa, que ser harmonizada com os seus direitos e liberdades fundamentais, como sejam o direito à reserva sobre a intimidade da vida privada, constitucionalmente protegido, nos termos do artigo 26.º da Constituição da República Portuguesa.

 

Contexto do RGPD

O Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD)[2], cujo objetivo, conforme destacado nos respetivos considerandos, consiste e «contribuir para a realização de um espaço de liberdade, segurança e justiça e de uma união económica, para o progresso económico e social, a consolidação e a convergência das economias a nível do mercado interno e para o bem-estar das pessoas singulares»[3] não deixou de atender à importância da investigação clínica para o desenvolvimento do conhecimento e da ciência e para os seus consequentes benefícios para as pessoas, designadamente, para a abordagem dos problemas de saúde das pessoas e a melhoria do seu estado de saúde[4].

A atividade de investigação científica e, assim, também, da investigação clínica e o tratamento dos dados pessoais às mesmas necessário encontra-se, pois, abrangido pelo RGPD[5]. Nesse sentido, e considerando a plena produção de efeitos do RGPD a partir do próximo dia 25 de maio de 2018, revela-se fulcral garantir a adequação das práticas de investigação clínica desenvolvidas a partir dessa data com o RGPD.

O RGPD traduz uma solução de instrumento jurídico de regulação sensível à importância da investigação clínica e à utilização que, para efeitos do seu desenvolvimento, se mostra necessária fazer dos dados das pessoas, incluindo, dos dados pertencentes a categorias especiais como é o caso dos dados de saúde.

 

Exceções à regra

A investigação científica constitui um dos casos em que o RGPD admite exceções à regra geral de proibição de tratamento de categorias especiais de dados pessoais, conforme resulta do disposto na alínea j) do n.º 2 do artigo 9.º.

A solução legal adotada pelo RGPD quanto ao tratamento de dados para fins de investigação assenta no mesmo racional que foi considerado quanto aos demais domínios de atividades envolvendo o tratamento de dados pessoais: o tratamento de dados para fins de investigação clínica está sujeito à garantia adequada dos direitos e liberdades do titular dos dados.

As exigências que o RGPD coloca aos promotores da investigação científica, enquanto responsáveis pelo tratamento de dados, no desenvolvimento de atividades de tratamento de dados pessoais incluem, naturalmente, a sujeição das mesmas aos princípios da licitude, da lealdade e da transparência, da limitação das finalidades, da minimização dos dados, da limitação da conservação e da integridade e confidencialidade.

Face a tais princípios e em vista do respetivo respeito importante se mostrará garantir a existência de um fundamento para o tratamento dos dados pessoais, designadamente, mediante a obtenção do consentimento do titular dos dados.

A exigência geral de que, para esse efeito, o consentimento seja prestado pelo titular dos dados mediante um ato positivo claro que indique uma manifestação de vontade livre, específica, informada e inequívoca de que consente no tratamento dos dados que lhe digam respeito, nomeadamente mediante uma declaração escrita, e a informação que importará transmitir ao titular dos dados para esse efeito impõem-se ao responsável pelo desenvolvimento da investigação, enquanto responsável pelo tratamento de dados.

 

Definição de finalidades

O RGPD admite, porém, que, em casos em que não seja possível identificar a totalidade da finalidade do tratamento de dados para efeitos de investigação científica, no momento da respetiva recolha, os titulares dos dados concedam o seu consentimento para determinadas áreas de investigação científica, desde que estejam de acordo com padrões éticos reconhecidos para a investigação científica.

Esta possibilidade, constituindo uma aparente vantagem para o responsável pelo tratamento de dados, coloca, no entanto, importantes desafios, na medida em que cumpre ao responsável demonstrar que o tratamento dos dados pessoais, quando assim tenha optado, assentes num consentimento prestado para um determinado domínio da investigação, respeita o princípio da limitação das finalidades. Tal respeito carecerá de ser juridicamente apreciado caso a caso, em vista de ser feita a adequada ponderação sobre se se verificam condições legítimas para fazer assentar o tratamento de dados para fins de investigação num consentimento prestado para um domínio de investigação mais abrangente e, não, para uma concreta e determinada finalidade, conforme constitui regra.

O RGPD admite, igualmente, que os dados pessoais previamente recolhidos para determinada finalidade sejam, posteriormente, tratados para outros fins, que não aqueles para os quais os dados pessoais tenham sido inicialmente recolhidos. O RGPD admite, em geral, que o tratamento de dados para fins de investigação seja considerado como tratamento lícito compatível com as finalidades para as quais os dados pessoais tenham sido inicialmente recolhidos, mas exige ser apurado em concreto sobre se a finalidade da nova operação de tratamento dos dados é ou não compatível com a finalidade para que os dados pessoais foram inicialmente recolhidos. Ao responsável pelo tratamento é, assim, exigível, após ter cumprido todos os requisitos para a licitude do tratamento inicial, que averigue, entre outros aspetos, sobre a existência de uma ligação entre a primeira finalidade e aquela a que se destina a nova operação de tratamento que se pretende efetuar, o contexto em que os dados pessoais foram recolhidos, em especial as expectativas razoáveis do titular dos dados quanto à sua posterior utilização, baseadas na sua relação com o responsável pelo tratamento, a natureza dos dados pessoais, as consequências que o posterior tratamento dos dados pode ter para o seu titular e a existência de garantias adequadas tanto no tratamento inicial como nas outras operações de tratamento previstas.

 

Informação e cautela

Também quanto ao respeito devido dos princípios do tratamento equitativo e transparente se colocam especificidades no caso de tratamento de dados pessoais para fins de investigação. Mantém-se a exigência de que o titular dos dados seja informado da operação de tratamento de dados e das suas finalidades bem como dos destinatários e dos direitos que lhe assistem, designadamente do direito de se opor ao tratamento, pelo responsável pelo tratamento no momento da sua recolha. O RGPD admite uma aplicação excecional desses princípios nos casos de tratamento de dados para fins de investigação, nomeadamente, quando a informação ao titular dos dados se revele impossível de concretizar ou implicar um esforço desproporcionado.

O desenvolvimento da investigação clínica e a indispensabilidade de recurso pelo promotor da investigação, face ao RGPD, responsável pelo tratamento dos dados, a outras pessoas, designadamente, os investigadores, suscita, igualmente, importantes cautelas na garantia de que o tratamento dos dados em que essas pessoas, designadamente os investigadores, participam cumpre com as exigências aplicáveis e impostas pelo RGPD. As relações de subcontratação e as exigências legais correspondentes, previstas no RGPD, encontram nas atividades de investigação clínica envolvendo tratamento de dados pessoais campo de particular e cuidada aplicação.

O RGPD, não tendo desconsiderado a especialidade do domínio do tratamento de dados pessoais para fins de investigação clínica e refletindo, em vários pontos, uma abordagem legal pautada por um racional de equilíbrio, coloca, pois, importantes desafios aos promotores da investigação clínica e aos investigadores, que carecem de ser adequadamente ponderadas e juridicamente suportadas para garantir a integral conformidade com a nova disciplina aprovada pelo RGPD.

 

 

1 Cf. artigo 3.º da Lei n.º 21/2014, de 16 de abril, alterada pela Lei n.º 73/2015, de 27 de julho.

2 Aprovado pelo Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados e que revoga a Diretiva 95/46/CE.

3 Nesse sentido vide o Considerando (2) do RGPD.

4 Observe-se, nesse sentido e em termos claros, o Considerando (157) do RGPD que reconhece a relevância da combinação de informações provenientes de registos para os investigadores obterem «novos conhecimentos de grande valor relativamente a problemas médicos generalizados, como as doenças cardiovasculares, o cancro e a depressão» bem como da maior amplitude das fontes de dados e do número de pessoas abrangidas para a melhoria dos resultados da investigação.

5 O Considerando (157) do RGPD afirma de forma inequívoca essa abrangência e torna claro dever adotar-se um sentido amplo na consideração do que dever ser entendido como tratamento de dados pessoais para fins de investigação científica; o RGPD esclarece, através desse mesmo Considerando, que esse tratamento abrange, «por exemplo, o desenvolvimento tecnológico e a demonstração, a investigação fundamental, a investigação aplicada e a investigação financiada pelo setor privado. (…) Os fins de investigação científica deverão também incluir os estudos de interesse público realizados no domínio da saúde pública».

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