O ajuste direto e o regresso da consulta prévia

Uma das novidades mais faladas da revisão do Código dos Contratos Públicos (CCP), efetuada pelo Decreto-Lei n.º 111-B/2017, de 31 de agosto, que entrará em vigor a 1 de janeiro de 2018, é a repristinação do procedimento por consulta prévia, “abolido” desde 2008.

A escolha do ajuste direto em função do valor do contrato passa a ser admissível abaixo dos € 30.000,00 para os contratos de empreitadas de obras públicas, € 20.000,00 para contratos de locação ou de aquisição de bens móveis e de aquisição de serviços e € 50,000,00 para outros contratos. Até esses montantes, as entidades adjudicantes estão legitimadas a convidar a apresentar proposta apenas uma entidade.

Os antigos limiares do ajuste direto ficam agora destinados à consulta prévia, com convite, pelo menos, a três entidades, quando o valor do contrato seja inferior a € 150.000,00 para os contratos de empreitadas de obras públicas, € 75.000,00 para contratos de locação ou de aquisição de bens móveis e de aquisição de serviços e € 100.000,00 para outros contratos.

 

Critérios materiais

Quanto à escolha do ajuste direto em função dos critérios materiais elencados nos artigos 24.º a 27.º do CCP, não houve alterações muito significativas, apenas se destacando a densificação do fundamento previsto na alínea e) do n.º 1 do artigo 24.º, que clarifica as situações em que o legislador considera que as prestações que constituem o objeto do contrato só podem ser confiadas a determinada entidade, a saber, quando “i) O objeto do procedimento seja a criação ou aquisição de uma obra de arte ou de um espetáculo artístico; ii) Não exista concorrência por motivos técnicos; iii) Seja necessário proteger direitos exclusivos, incluindo direitos de propriedade intelectual.”. Reforçando o n.º 4 que as subalíneas ii) e iii) só podem ser adotadas “quando não exista alternativa ou substituto razoável e quando a inexistência de concorrência não resulte de uma restrição desnecessária face aos aspetos do contrato a celebrar.”.

A respeito dos critérios materiais estabelecidos nos artigos 24.º a 27.º, diz o artigo 27.º-A do CCP que, nas situações aí previstas deve optar-se pela consulta prévia em detrimento do ajuste direto, sempre que o recurso a mais de um operador económico seja possível e compatível com o fundamento invocado para a adoção deste procedimento. Não obstante o potencial de litigiosidade desta norma, que revela de difícil concretização, a opção do legislador é clara: mesmo perante um critério material, sempre que seja possível convidar a apresentar proposta mais do que uma entidade, então o procedimento correto é a consulta prévia.

A título de exemplo, o fundamento da “urgência imperiosa” previsto na alínea c) do n.º 1 do artigo 24.º, pode justificar que não se recorra ao concurso público que, como é sabido, é um procedimento moroso, que não raras vezes demora até 6 meses a concluir, no entanto, não significa que não se possa optar pela consulta prévia, que será, ainda assim, um procedimento mais célere e que tem a vantagem de garantir maior concorrência.

O próprio legislador fez essa opção, ao estabelecer no artigo 259.º que para a formação de contratos a celebrar ao abrigo de acordos-quadro na modalidade prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 252.º (acordos quadro cujos termos não abranjam todos os seus aspetos submetidos à concorrência), deve adotar-se o procedimento de consulta prévia. Entendeu, pois, que sendo possível chamar a apresentar proposta mais do que uma entidade, o princípio da concorrência deveria prevalecer.

 

Fase de negociação sobre atributos da proposta

A tramitação procedimental do ajuste direto e da consulta prévia, constante dos artigos 112.º a 129.º tem pontos comuns, no entanto a consulta prévia pode, se a entidade adjudicante assim o previr no convite à apresentação de proposta, conter uma fase distinta – de negociação, que incide (apenas) sobre os atributos das propostas.

 

Escolha das entidades convidadas

Outra norma de difícil aplicação, fruto deste desdobramento de procedimentos, é o artigo 113.º sobre a escolha das entidades convidadas, que, para efeitos do cálculo do valor acumulado dos contratos celebrados com uma mesma entidade, deixa cair o requisito da identidade do objeto dos contratos e mistura adjudicações na sequência de ajustes diretos e de consultas prévias. Assim, veda o convite à apresentação de propostas a entidades às quais a entidade adjudicante já tenha adjudicado, no ano económico em curso e nos dois anos económicos anteriores, na sequência de consulta prévia ou ajuste direto adotados nos termos do disposto nas alíneas c) e d) do artigo 19.º e alíneas c) e d) do n.º 1 do artigo 20.º, consoante o caso, propostas para a celebração de quaisquer contratos cujo preço contratual acumulado seja igual ou superior aos limites referidos naquelas alíneas.

Suscita-se, assim, a dúvida, sobre se a soma deverá ser feita por tipo de procedimento ou combinando ajustes diretos e consultas prévia e por tipo de contrato ou independentemente do respetivo objeto.

Enquanto a jurisprudência não for chamada a pronunciar-se sobre este assunto, recomenda-se uma interpretação cautelosa. Assim, aquando da escolha da entidade convidada ou das entidades convidadas a apresentar proposta, sugere-se que a entidade adjudicante faça um levantamento de todas as adjudicações, independentemente do objeto, efetuadas a cada uma, no ano económico em curso e nos dois anos económicos anteriores, na sequência de consulta prévia ou ajuste direto adotados em função do valor do contrato, e verifique se para o tipo de contrato e procedimento pré-contratual em questão estão esgotados ou não os limiares estabelecidos nas alíneas c) e d) do artigo 19.º e nas alíneas c) e d) do n.º 1 do artigo 20.º.

A título de exemplo, se à data de hoje uma entidade adjudicante estiver no processo de escolha do operador económico convidado a apresentar proposta num ajuste direto relativo a uma prestação de serviços, não poderá recorrer a uma entidade que, entre 2015 e 2017, tenha sido adjudicatária em procedimentos de consulta prévia e ajuste direto adotados nos termos do disposto nas alíneas c) e d) do artigo 19.º e alíneas c) e d) do n.º 1 do artigo 20.º, cuja soma dos preços de todos esses contratos seja de € 45.000,00, uma vez que o limite dos € 20.000,00 já se encontrará ultrapassado. Mas já poderá convidar essa mesma entidade se optar por um procedimento de consulta prévia, pois o limiar dos € 75.000,00 ainda estará por alcançar.

 

Os efeitos da repristinação

Os efeitos da repristinação da figura da consulta prévia, muito criticada pela doutrina nacional, na promoção da concorrência e abertura do mercado público a mais participantes, antecipam-se diminutos, pois sempre se tratará de um procedimento fechado, no qual a entidade adjudicante tem o poder de escolher os convidados que chama a apresentar proposta, sem publicitação prévia e, logo, muito vulnerável a práticas anticoncorrenciais, nomeadamente conluio entre os operadores económicos. Pelo contrário, será, certamente, hercúlea a tarefa dos tribunais administrativos e do Tribunal Constitucional, na sindicância das opções da entidade adjudicante nesta matéria.

Jane Kirkby, advogada e sócia da BAS

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