O projetado regime excecional de contratação pública para projetos cofinanciados por fundos europeus

Marco Real Martins comenta a Proposta de Lei nº 41/XIV/1ª que estabelece medidas especiais de contratação pública e altera o Código dos Contratos Públicos e o Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

Tem sido notícia, com generalizado tom crítico, a Proposta de Lei n.º 41/XIV/1.ª, a qual visa, designadamente, i) a aprovação de medidas especiais de contratação pública em matéria de projetos cofinanciados por fundos europeus, de habitação e descentralização, de tecnologias de informação e conhecimento, de execução do Programa de Estabilização Económica e Social, de gestão de combustíveis no âmbito do Sistema de Gestão Integrada de Fogos Rurais e de bens agroalimentares, ii) e  proceder à décima segunda alteração ao Código dos Contratos Públicos (CCP), aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de janeiro, na sua redação atual.

Fundamentalmente, as críticas prendem-se com a possibilidade de adoção generalizada de procedimentos de consulta prévia para a celebração de contratos de valor inferior aos limiares europeus e com a dispensa dos limites à contratação reiterada do(s) mesmo(s) operador(es) económico(s) para efeitos de determinação das entidades que podem ser convidadas a apresentar proposta nessas consultas prévias.

 

Parecer APMEP à comissão competente

Tendo contribuído, na qualidade de membro dos corpos sociais da APMEP – Associação Portuguesa de Mercados Públicos, para a elaboração do “Parecer da APMEP sobre a proposta de alteração do CCP (Projeto de Lei nº41/XIV/1ª): AS DEZ PROPOSTAS DE ALTERAÇÃO CONSIDERADAS PRIORITÁRIAS” (consultável in https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=45053), cremos que merecem destaque, a título introdutório, dois aspetos essenciais de política legislativa, oportunamente versados em tal parecer:

i) Por um lado, a constatação de que se tem verificado em Portugal nesta área da contratação pública (mas não apenas nesta área, como é do conhecimento generalizado) um verdadeiro frenesim legislativo: tendo o CCP sido aprovado em 2008 (Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de janeiro), entretanto passaram-se 12 anos e 11 alterações ao mesmo, sendo esta alteração, por isso, a 12.ª alteração em 12 anos…!

Tal ritmo de alteração legislativa na área da contração pública, sem paralelo noutro Estado Membro da União Europeia, constituiu, sem dúvida, uma medida de sinal contrário à almejada estabilização e consolidação de conhecimentos deste complexo quadro legislativo, essenciais para uma melhor aplicação prática do mesmo.

ii) Por outro lado, e ainda que diretamente relacionado com o aspeto precedentemente enunciado, é de destacar o caráter avulso e conjetural da maioria das alterações legislativas ao CCP, sendo que as alterações projetadas por esta Proposta de Lei n.º 41/XIV/1.ª constituem um dos melhores exemplos disso mesmo, na medida em que, no essencial, são motivadas fundamentalmente por um propósito de aceleração na utilização dos fundos comunitários.

Com efeito, é “consensual que se devem evitar as alterações apressadas e pressionadas por eventos conjunturais e que, pelo contrário é recomendável, preceder as alterações por estudos de avaliação do desempenho dos quadros legais existentes, os quais devem ser realizados por entidades independentes e tendo em conta o parecer da sociedade civil, nas suas múltiplas morfologias”, tendo esta sido “a orientação adotada pelas instituições comunitárias para preparar as Diretivas e também por numerosos Estados para as transpor, mas não por Portugal, aduzindo-se o argumento de que tal pode ser substituído por “consultas públicas” o que apenas demonstra afastamento em relação às orientações modernas e consensualmente defendidas neste âmbito, designadamente por organizações internacionais tais como a OCDE (ver OCDE,2020, Recommendation of the Council on Improving the Quality of Government

Regulation a qual vem sendo atualizada desde 1993)” (cfr. Parecer da APMEP sobre a proposta de alteração do CCP (Projeto de Lei n.º 41/XIV/1ª) supra).

 

Proposta Lei 41/XIV

Recentrando a atenção no texto da Proposta de Lei n.º 41/XIV/1.ª, especificamente no que concerne ao projetado regime excecional de contratação pública para projetos cofinanciados por fundos europeus, é prevista (no seu artigo 2.º) a possibilidade de as entidades adjudicantes poderem:

a) Promover procedimentos de consulta prévia, com convite a pelo menos 5 entidades (sendo que atualmente o número mínimo de entidades a convidar é 3), quando o valor do contrato for inferior aos limiares referidos nos n.os 2, 3 e 4 do artigo 474.º do CCP, a saber:

  • Para os contratos de concessão de serviços públicos e de obras públicas: € 5.350.000;
  • Para os contratos de empreitada de obras públicas: € 5.350.000;
  • Para os contratos públicos de fornecimentos de bens, de prestação de serviços e de concursos de conceção, adjudicados pelo Estado: € 139.000;
  • Para os contratos públicos de fornecimentos de bens, de prestação de serviços e de concursos de conceção celebrados pelas entidades que operam nos setores da água, da energia, dos transportes e dos serviços postais: € 428.000;
  • Para os contratos públicos relativos a serviços sociais e outros serviços específicos enumerados no Anexo IX ao CCP, celebrados pelas entidades que operam nos setores da água, da energia, dos transportes e dos serviços postais: € 1.000.000;
  • Para os contratos públicos de fornecimentos de bens, de prestação de serviços e de concursos de conceção, adjudicados por outras entidades adjudicantes: € 214.000;
  • Para os contratos públicos relativos a serviços sociais e outros serviços específicos enumerados no Anexo IX ao CCP: € 750.000.

Como facilmente se constata, esta medida representa um aumento substancial dos valores até aos quais se admite o recurso ao procedimento de consulta prévia (atualmente fixados € 75.000, para bens e serviços, € 150.000, para empreitadas, e € € 100.000, para outros contratos), para contratos de empreitadas de obras públicas, contratos públicos de aquisição ou locação de bens, de prestação de serviços e ou outros contratos, respetivamente.

Aliada a esta possibilidade de adoção generalizada de procedimentos de consulta prévia para a celebração de contratos de valor inferior aos limiares europeus, identificam-se, em especial, duas outras medidas que a acompanham, com o mesmo propósito de simplificação procedimental: por um lado, i) a dispensa dos limites à contratação reiterada do(s) mesmo(s) operador(es) económico(s) para efeitos de determinação das entidades que podem ser convidadas a apresentar proposta nessas consultas prévias, eliminando, assim, a limitação de convites a uma mesma entidade (cfr. n.º 2 do artigo 2.º da Proposta de Lei n.º 41/XIV/1.ª); e, por outro lado, ii) a revogação do artigo 27.º-A do CCP (recentemente introduzido pelo Decreto-Lei n.º 111-B/2017, de 31 de agosto), permitindo convites a uma só entidade em todos os casos em que se considerem preenchidos os pressupostos aplicativos dos fundamentos materiais de escolha de procedimentos previstos nos artigos 24.º a 27.º do CCP.

b) Iniciar procedimentos de ajuste direto simplificado (procedimento desburocratizado, com convite a apenas uma entidade, e no qual a adjudicação pode ser feita diretamente, sobre uma fatura ou um documento equivalente, com dispensa de quaisquer formalidades) nos termos do artigo 128.º do CCP, quando o valor do contrato for igual ou inferior a € 15.000 – aparentemente, quer seja para a celebração de contratos de aquisição ou locação de bens móveis e de aquisição de serviços, quer seja para a celebração de contratos de empreitadas de obras públicas, atenta a indistinção de objetos consagrada na norma do artigo 2.º, n.º 1, alínea b), da Proposta de Lei n.º 41/XIV/1.ª.

Atualmente, o ajuste direto simplificado pode ser adotado para a formação de um contrato de aquisição ou locação de bens móveis e de aquisição de serviços cujo preço contratual não seja superior a € 5.000, ou no caso de empreitadas de obras públicas, a € 10.000.

c) Reduzir o prazo para apresentação de propostas e candidaturas em concursos públicos, para 15 dias, e concursos limitados por prévia qualificação, para 15 dias para a apresentação de candidaturas e para 10 dias para a apresentação de propostas, sem necessidade de fundamentação.

Mais se prevê que os referidos procedimentos tramitados ao abrigo deste regime excecional de contratação pública para projetos cofinanciados por fundos europeus devam ser tramitados em plataformas eletrónicas de contratação pública (cfr. n.º 3 do artigo 2.º da Proposta de Lei n.º 41/XIV/1.ª), o que, não obstante se tratar de uma medida com um louvável propósito de maior transparência e publicidade (ambas incrementadas face à solução atualmente vigente nos procedimentos de consulta prévia e ajuste direto, em que tal não é obrigatório, cfr. artigos 62.º, n.º 1, in fine, e 115.º, n.º 1, alínea g), in fine, ambos do CCP), cremos, todavia, que a mesma incorre, aparentemente, no lapso de também sujeitar os procedimentos de ajuste direto simplificado às plataformas eletrónicas de contratação pública, o que, atenta a natureza própria de tais procedimentos, marcados por uma forma simplificada do agir administrativo (com a adjudicação diretamente sobre uma fatura ou documento equivalente, sem necessidade de quaisquer outras formalidades), não parece fazer sentido.

Marco Real Martins, advogado e sócio da BAS

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